No meu trabalho vejo o fascínio que a moda exerce sobre as pessoas, sobretudo o alto luxo, mas também observo como é uma das indústrias mais mal compreendidas.
O fato é que o mundo da moda é cercado de estereótipos, quer você olhe de fora, como consumidor ou apaixonado por moda, quer você olhe de dentro, como profissional da moda.
Na verdade, clichês e estereótipos – aquelas ideias preconcebidas alimentadas pela falta de conhecimento real sobre o assunto – sempre acompanharam o mundo da moda, mas essa diferença entre o real e o imaginário nunca foi tão marcante como nos dias de hoje.
Isso porque o mundo da moda, sobretudo do alto luxo, era um mundo fechado, inatingível, com seus produtos acessíveis a poucos mortais, objeto de uma verdadeira mistificação!
Assim, fazemos suposições com base no que vemos nos meios de comunicação sem explorar, pesquisar e conhecer, de fato, a realidade.
Com a internet, que abriu o acesso digital a infinitos conteúdos livremente utilizáveis, esses estereótipos sobre o mundo da moda são reforçados e amplificados.
Muitas vezes nos tornamos leitores distraídos, nem sempre cuidadosos para buscar, entender e, até mesmo, compartilhar as informações, repetindo, muitas vezes, mensagens incorretas.
Estamos diante dos reais efeitos do mundo digital e, claro, essa desinformação não é um privilégio do mundo da moda, mas o atinge de forma contundente.
Por onde andam os estereótipos!
Equívocos sobre a moda já circulam na mídia há tempos, mas com o mundo cada vez mais mergulhado na internet esses alcançam virtualmente a todos.
O cinema e a televisão, com seus filmes e séries de sucesso também disponíveis na web, como “O diabo veste Prada”, “Sex and the City” e, mais recentemente, “Emily em Paris”, para citar só alguns, mostram uma série de clichês e estereótipos sobre o mundo da moda.
O cinema tem sido um forte aliado da moda; conta, inclusive, com memoráveis colaborações de diversos estilistas famosos em filmes inesquecíveis, como detalhamos no nosso post sobre cinema e moda, que nos fazem sonhar, mas que também alimentam muitos desses clichês.
Quem não se deixou encantar pela Anne Hathaway no papel de Andrea Sachs, a assistente “escravizada” no filme “O Diabo Veste Prada” de 2006, um dos mais citados pelos fashionistas de todo o mundo.
Embora as tiradas afiadas de Miranda Priestly, personagem interpretada por Meryl Streep, baseada na icônica diretora da Vogue Anna Wintour, nos façam rir, se olharmos corretamente sob a superfície alguns detalhes do filme são bastante irreais.
A protagonista Andrea Sachs, uma garota de vinte anos, desembarca nos escritórios de uma revista de moda e é contratada para um trabalho para o qual ela não está preparada.
Apesar de todo sofrimento pelo qual passa, contra todas as expectativas, ela consegue cumprir, com sucesso, missões verdadeiramente impossíveis.
Como na jornada de qualquer herói que se conhece, essas transformações radicais nos fazem sonhar quando vistas no cinema, mas na realidade ajudam a fomentar diversos clichês.
O filme sugere, por exemplo, que o sucesso na moda é fácil, algo fortuito, quase um milagre, se pensarmos bem, e que todos tem um look sempre perfeito; o trabalho é cercado de glamour e, mesmo, muita frivolidade.
Quando, na verdade, há uma dura realidade no mundo da moda, além de muito trabalho no backstage!
Desconstruindo os clichês e esteriótipos!
Consumidores e profissionais de moda, nós que circulamos por esse imenso e fascinante mundo, nem sempre somos tão racionais como ousamos crer, muitas vezes, desconhecemos a totalidade de causas que definem nossa conduta e, certamente, os estereótipos não nos ajudam!
Na expectativa de desmanchar alguns desses clichês sobre a moda e o trabalho na moda, vamos aos fatos.
1. A moda é para poucos!
Se você não cria sua própria roupa, certamente o que você veste é determinado pela indústria da moda.
As campanhas publicitárias cheias de celebridades e desfiles deslumbrantes com modelos perfeitas e peças exclusivas podem induzir as pessoas a pensarem que a moda é para poucos, quando, na verdade, a força motriz da indústria somos todos nós.
Claro que cada um dos níveis da moda tem um público específico, mas a maioria dos profissionais de moda estão ativamente envolvidos em garantir vestuário de qualidade para todos.
Por exemplo, a haute couture é acessível para uma minoria, todavia a moda produzida em massa, fast fashion, não é necessariamente de má qualidade e existe para todos nós.
Também encontramos marcas únicas que produzem peças acessíveis, com muita qualidade e criatividade e, ainda por cima, são comprometidas com a moda consciente que está chegando com força no mundo fashion.
Moda não significa vestir roupas caras e de grife num corpo perfeito, mas um espaço para criatividade, inovação e descoberta de um estilo único que é só nosso.
Com o consumo consciente, cada vez mais a moda é feita para todos independentemente do tamanho do corpo, da orientação de gênero e do grupo étnico, e as empresas que não caminharem nessa direção certamente ficarão para trás.
2. A moda é sinônimo de desperdício!
Não há como negar que há desperdício na indústria da moda, uma das mais poluentes do mundo, mas as coisas começaram a mudar.
Hoje, muitos designers e empresas da indústria da moda são extremamente conscientes da sua responsabilidade para com as pessoas e o meio ambiente, adotando tecnologias redutoras de resíduos, como o novo polo têxtil na Finlândia, e a reciclagem de produtos.
Sem dúvida, a sustentabilidade e a circularidade criativa estão na moda!
3. O trabalho na moda é moleza!
Para trabalhar na indústria da moda é preciso ter conhecimentos, habilidades e competências específicas, de acordo com a carreira que se escolhe, lembrando que a moda é o resultado do trabalho de tantas pessoas.
Os prazos são curtos, os cronogramas apertados e as etapas encadeadas; não há espaço para erros, sem gerar resultados e prejuízos financeiros, como, por exemplo, o atraso no lançamento de coleção e o estoque de peças com defeitos.
No caso de grandes marcas que, na prática, têm budgets bem mais folgados, o tamanho das coleções e os prazos apertados e encadeados, para a concepção das coleções, fittings, desfiles, produção e vendas nos showrooms, não permitem falhas.
Já nas empresas menores, que têm um custo de produção maior, pois a escala é menor, qualquer erro compromete significativamente as vendas e a rentabilidade.
Ou seja, o trabalho não é fácil, por conta do ciclo de produção, exige profissionais preparados, e, ainda, capazes de lidar com situações de stress no trabalho.
4. O trabalho na moda é criar roupas!
A indústria da moda não se trata apenas de ter inspirações, fazer croquis e criar coleções de sucesso.
Com a chegada da indústria 4.0, além de roupas e acessórios, há muito mais acontecendo e sendo feito na indústria da moda.
Por exemplo, com a internet das coisas e pessoas, trabalhar na moda inclui a criação de conteúdo digital para plataformas diversas, mídias sociais e e-commerce, com os desfiles em streaming, showrooms digitais e vendas online.
Junto com tudo isso, que tem causado sensação no mundo fashion, há muitas inovações na produção das roupas e acessórios, como os tecidos inteligentes, impressão 3D, nanotecnologia, dentre outras, como contamos no nosso post sobre o futuro da moda, que tornaram a própria criação das roupas um processo complexo.
5. Trabalhar na moda é ter um look perfeito!
Muitas vezes imagino se as pessoas que se divertem com Miranda Presley, Andrea Sachs, Carrie Bradshaw e Emily Cooper imaginam que os profissionais da moda acordam de manhã com maquiagem perfeita e vestidas impecavelmente.
Não, essa perfeição é impossível!
Tirando alguns estilistas e diretores criativos que são o cartão de visita da marca, o código de vestimenta na moda é como o de outro trabalho qualquer, talvez com um pouco mais de estilo, liberdade e muita criatividade, pois amamos moda.
Observo, trabalhando na moda na Europa há um bom tempo, que a maioria dos profissionais de moda vivem de salários, que normalmente são abaixo da média dos outros setores, e aquela peça da marca de luxo que usamos foram adquiridas, na maioria das vezes, nas promoções para funcionários com bons descontos.
Quantas vezes produzi peças lindas que gostaria de ter, mas que não estavam dentro do meu orçamento, sobretudo porque trabalhava na runway, onde as peças são exclusivas e caríssimas.
Na verdade, o objetivo da indústria é incentivar as pessoas a explorar suas escolhas por meio de roupas, acessórios e outros complementos, e quem faz parte do setor não precisa necessariamente se “vestir na moda” para que isso aconteça.
6. Trabalhar na moda é uma festa!
Não me surpreende que muitas pessoas acreditem que a indústria da moda é um eterno baile de gala no Met cheio de celebridades de todo o mundo.
De fato, os eventos e festas glamourosos são comuns na indústria da moda, mas são direcionados para criar networking, promover a marca e fechar negócios milionários; estratégias que não se restringem ao setor.
Além disso, na maioria das vezes, essas festas são reservadas para celebridades, empresários e influencers, inalcançáveis para o resto do mundo e para a maior parte dos próprios profissionais da moda.
Na verdade, para nós que trabalhamos na moda, os eventos e as semanas de moda são antecedidos por um volume imenso de trabalho, muitas horas extras, e marcados pela preparação das peças para os eventos ou por corridas pelas ruas da cidade na tentativa de não perder nenhum desfile.
7. Trabalhar na moda é ser maltratado!
Sofrer, ser tratado mal por chefes despóticos e insensíveis acontece, aconteceu comigo e vi acontecer com muitos outros colegas.
Não resta dúvida que essas pessoas de temperamento difícil existem, sobretudo numa área em que há muitos egos inflados, mas isso não é a regra.
No trabalho na moda a gente lida com colegas e chefes de todos os tipos e, normalmente, em equipes, onde nem a grosseria nem a bondade são a regra.
Há pessoas com atitudes mais profissionais e outras menos, há empresas de moda em que é melhor trabalhar que outras, como qualquer outro setor.
De fato, o que existe é uma enorme pressão razão das características da indústria, com intenso ciclo de produção – diversas coleções lançadas anualmente e prazos muito apertados -, que podem nos deixar verdadeiramente estressados, como explicamos no nosso post sobre o stress no trabalho na moda.
O mundo da moda como ele é!
Nesse mundo cada vez mais digital, só com base no que ouvimos, lemos ou vemos na mídia e na internet não podemos extrapolar a nossa compreensão de tudo o que ocorre e de todos que transitam na indústria da moda.
É prudente examinarmos melhor as informações e os fatos, para saber o que é real ou fantasia e ter um referencial mais preciso e adequado da realidade, rompendo com as armadilhas dos estereótipos.
Assim, vale a pena colocar sob a luz os muitos equívocos sobre a moda, que todos temos e muitas vezes alimentamos e compartilhamos, para que ela cumpra, com menos inquietudes e crises íntimas, uma das suas promessas, a liberdade de se ser quem se é!
O fato é que no backstage, da concepção ao lançamento das coleções, detrás das fachadas desse mundo fascinante com seus personagens icônicos, há o trabalho de muitos e dedicados profissionais na criação dos pedacinhos deste imenso universo da moda.
Não deixem de conferir…
The September Issue (2009)
Custo real da moda e desabamento em Bangladesh